terça-feira, 4 de setembro de 2012

Vídeos sobre o conto "Venha ver o pôr do sol".

Os vídeos a seguir são baseados no conto de Lygia Fagundes Telles "Venha ver o pôr do sol".




Postado por: Joyce Caroline.

domingo, 2 de setembro de 2012

O auto da barca do inferno.




O Auto da Barca do Inferno é uma complexa alegoria dramática de Gil Vicente, representada pela primeira vez em 1517. É a primeira parte da chamada trilogia das Barcas.
Os especialistas classificam-na como moralidade, mesmo que muitas vezes se aproxime da farsa. Ela proporciona uma amostra do que era a sociedade lisboeta das décadas iniciais do século XVI, embora alguns dos assuntos que cobre sejam pertinentes na atualidade.
Diz-se "Barca do Inferno", porque quase todos os candidatos às duas barcas em cena – a do Inferno, com o seu Diabo, e a da Glória, com o Anjo – seguem na primeira. De facto, contudo, ela é muito mais o auto do julgamento das almas.
Para entrar em contato com o o conto na íntegra, segue o link: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000107.pdf
Postado por: Vanessa Rosa

Iracema

Iracema, é um romance da literatura brasileira publicado em 1865 e escrito por José de Alencar
O romance conta, de forma poética, o amor quase impossível entre um branco, Martim Soares Moreno, pela bela índia Iracema, a virgem dos lábios de mel e de cabelos mais negros que a asa da graúna e explica poeticamente as origens da terra natal do autor, o Ceará. 
Para ler o romance na íntegra, segue o link: http://www3.universia.com.br/conteudo/livros/Iracema.pdf

Postado Por Vanessa Rosa.

Venha ver o pôr do sol.

Lygia Fagundes  Telles

Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. no meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. a débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde. ele a esperava encostado a uma árvore. esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estudante. - minha querida raquel. ela encarou-o, séria. e olhou para os próprios sapatos. - veja que lama. só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. que idéia, ricardo, que idéia! tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima. ele riu entre malicioso e ingênuo. - jamais? pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância! quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra? foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. tirou um cigarro. - hein?! ah, raquel... - e ele tomou-a pelo braço. você, está uma coisa de linda. e fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. então? fiz mal? podia ter escolhido um outro lugar, não? -abrandara a voz. - e que é isso aí? um cemitério? ele voltou-se para o velho muro arruinado. indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem. - cemitério abandonado, meu anjo. vivos e mortos, desertaram todos. nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo acrescentou apontando as crianças na sua ciranda. ela tragou lentamente. soprou a fumaça na cara do companheiro. - ricardo e suas idéias. e agora? qual o programa? brandamente ele a tomou pela cintura. - conheço bem tudo isso, minha gente está, enterrada aí. vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo. ela encarou-o um instante. evergou a cabeça para trás numa risada. - ver o pôr-do-sol!... ali, meu deus... fabuloso, fabuloso!... me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! e para quê? para ver o pôr-do-sol num cemitério... ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta. - raquel, minha querida, não faça assim comigo. você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura... - e você acha que eu iria? - não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. então pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... - disse ele, aproximando-se mais. acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. ficou sério. e aos poucos, inúmeras rugazinhas foram-se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. não era nesse instante tão jovem como aparentava. mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento. - você fez bem em vir. - quer dizer que o programa... e não podíamos tomar alguma coisa num bar? - estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende. - mas eu pago. - com o dinheiro dele? prefiro beber formicida. escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não concorda comigo? até romântico. ela olhou em redor. puxou o braço que ele apertava. - foi um risco enorme, ricardo. ele é ciumentíssimo. está farto de saber que tive meus casos. se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida. - mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado - prosseguiu ele, abrindo o portão. os velhos gonzos gemeram. - jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui. - É um risco enorme, já disse. não insista nessas brincadeiras, por favor. e se vem um enterro? não suporto enterros. mas enterro de quem? raquel, raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo. o mato rasteiro dominava tudo. e não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. foram andando pela longa alameda banhada de sol. os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos, medalhões de retratos esmaltados. - É imenso, hein? e tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, que deprimente - exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. - vamos embora, ricardo, chega. - ali, raquel, olha um pouco para esta tarde! deprimente por quê? não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. estou-lhe dando um crepúsculo numa bandeja, e você se queixa. - não gosto de cemitério, já disse. e ainda mais cemitério pobre. delicadamente ele beijou-lhe a mão. - você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo. - É, mas fiz mal. pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais. - ele é tão rico assim? - riquíssimo. vai me levar agora numa viagem fabulosa até o oriente. já ouviu falar no oriente? vamos até o oriente, meu caro... ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. a pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. a fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram. - eu também te levei um dia para passear de barco, lembra? recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo. - sabe, ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... mas apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. que ano aquele! quando penso, não entendo como agüentei tanto, imagine, um ano! - É que você tinha lido a dama das camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. e agora? que romance você está lendo agora? - nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. - pois sim. durou pouco essa eternidade. ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido. - mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. veja - disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. nem isso. ela aconchegou-se mais a ele. bocejou. - está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim. - deu-lhe um rápido beijo na face. -chega, ricardo, quero ir embora. - mais alguns passos... - mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! olhou para trás. - nunca andei tanto, ricardo, vou ficar exausta. - a boa vida te deixou preguiçosa? que feio - lamentou ele, impelindo-a para a frente. - dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr-do-sol. sabe, raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. tínhamos então doze anos. todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. agora as duas estão mortas. - sua prima também? também. morreu quando completou quinze anos. não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. extraordinário, raquel, extraordinário como vocês duas... penso agora que toda a beleza-dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus. vocês se amaram? ela me amou. foi a única criatura que... fez um gesto. - enfim, não tem importância. raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o. - eu gostei de você, ricardo.' -e eu te amei.. e te amo ainda. percebe agora a diferença? um - pássaro rompeu cipreste e soltou um grito. ela estremeceu. - esfriou, não? vamos embora. - já chegamos, meu anjo. aqui estão meus mortos. pararam diante de uma capelinha coberta: de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. a estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. a luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. no centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do cristo. na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a ca tacumba. ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha. que triste que é isto, ricardo. nunca mais você esteve aqui? ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. sorriu, melancólico. - sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? mas já disse que o que mais amo neste cemitério é precisamente este abandono, esta solidão. as pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. absoluta. ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. na semiobscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento. - e lá embaixo? - pois lá estão as gavetas. e, nas gavetas, minhas raízes. pó, meu anjo, pó - murmurou ele. abriu a portinhola e desceu a escada. aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. - a cômoda de pedra. não é grandiosa? detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor. - todas essas gavetas estão cheias? - cheias?... só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado embutido no centro da gaveta. . ela cruzou os braços. falou baixinho, um ligeiro tremor na voz. - vamos, ricardo, vamos. - você está com medo. - claro que não, estou é com frio. suba e vamos embora, estou com frio! ele não respondeu. adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado. - a priminha maria emília. lembro-me até do dia em que tirou esse retrato, duas semanas antes de morrer... prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se exibir, estou bonita? estou bonita?... falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. - não é que fosse bonita, mas os olhos... venha ver, raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus. ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada. - que frio faz aqui. e que escuro, não estou enxergando ! acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira. - pegue, dá para ver muito bem... - afastou-se para o lado. repare nos olhos. mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça... - antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. leu em voz alta, lentamente. - maria emília, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos e falecida... - deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. - mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos ! seu menti... um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. olhou em redor. a peça estava deserta. voltou o olhar para a escada. no topo, ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. tinha seu sorriso ? meio inocente, meio malicioso. - isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso! brincadeira mais cretina! - exclamou ela, subindo rapidamente a escada. - não tem graça nenhuma, ouviu? ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás. ricardo, abre isto imediatamente! vamos, imediatamente! - ordenou, torcendo o trinco. - detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. brincadeira mais estúpida! - uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta tem uma frincha na porta. depois vai se afastanto devagarinho, bem devagarinho. você terá o pôr-do-sol mais belo do mundo. ela sacudia a portinhola. ricardo, chega, já disse! chega! abre imediatamente, imediatamente! - sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. ensaiou um sorriso. - ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra... ele já não sorria. estava sério, os olhos diminuídos. em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque. boa noite, raquel..chega, ricardo! você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo. - cretino! me dá a chave desta porcaria, vamos! - exigiu, examinando a fechadura nova em folha. -examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. imobilizou-se. foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. foi escorregando. -não, não... voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. foi puxando, as duas folhas escancaradas. - boa noite, meu anjo. os lábios dela se pregavam um ao outro, como se, entre eles houvesse cola. os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida. - não.. guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido.: no breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. e, de repente, o grito medonho, inumano: nÃo! durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de, um animal sendo, estraçalhado. depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. ficou atento. nenhum ouvido humano escutaria agora, qualquer chamado. -acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. crianças ao longe brincavam de roda.  
Fonte: http://vilamulher.terra.com.br/conto-venha-ver-o-pordosol-9-4351062-2547-pfi-vania166524.php
Postado por: Vanessa Rosa

O barril de amontilado.

Edgar Alan Poe



Suportei o melhor que pude as mil e uma injúrias de Fortunato; mas quando começou a entrar pelo insulto, jurei vingança. Vós, que tão bem conheceis a natureza da minha índole, não ireis supor que me limitei a ameaçar. Acabaria por vingar-me; isto era ponto definitivamente assente, e a própria determinação com que o decidi afastava toda e qualquer idéia de risco. Devia não só castigar, mas castigar ficando impune. Um agravo não é vingado quando a vingança surpreende o vingador. E fica igualmente por vingar quando o vingador não consegue fazer-se reconhecer como tal àquele que o ofendeu.

Deve compreender-se que nem por palavras, nem por atos, dei motivos a Fortunato para duvidar da minha afeição. Continuei, como era meu desejo, a rir-me para ele, que não compreendia que o meu sorriso resultava agora da idéia da sua imolação.

Tinha um ponto fraco, este Fortunato sendo embora, sob outros aspectos, homem digno de respeito e mesmo de receio. Orgulhava-se da sua qualidade de entendido em vinhos. Poucos italianos possuem o verdadeiro espírito de virtuosidade. Na sua maior parte, o seu entusiasmo é adaptado às circunstâncias de tempo e de oportunidade para ludibriar milionários britânicos e austríacos. Em pintura e pedras preciosas, Fortunato, à semelhança dos seus concidadãos, era um charlatão, mas na questão de vinhos era entendido. Neste aspecto eu não diferia substancialmente dele: eu próprio era entendido em vinhos de reserva italianos, e comprava-os em grandes quantidades sempre que podia.

Foi ao escurecer, numa tarde de grande loucura da quadra carnavalesca, que encontrei o meu amigo. Acolheu-me com excessivo calor, pois bebera de mais. Trajava de bufão; um fato justo e parcialmente às tiras, levando na cabeça um barrete cônico com guizos. Fiquei tão contente de o ver que julguei que nunca mais parava de lhe apertar a mão.

- Meu caro Fortunato - disse eu -, ainda bem que o encontro. Você tem hoje uma aparência notável! Saiba que recebi um barril de um vinho que passa por ser amontillado; mas tenho cá as minhas dúvidas.

- O quê? - disse ele - Amontillado? Um barril? Impossível! E em pleno Carnaval!

- Tenho as minhas dúvidas - respondi -, e estupidamente paguei o verdadeiro preço do amontilladosem ter consultado o meu amigo. Não o consegui encontrar e tinha receio de perder o negócio!

- Amontillado!

- Tenho as minhas dúvidas - insisti.

- Amontillado!

- E tenho de as resolver.

- Amontillado!

- Como vejo que está ocupado, vou procurar Luchesi. Se existe alguém com espírito crítico, é ele. Ele me dirá.

- Luchesi não distingue amontillado de xerez.

- No entanto, há muito idiota que acha que o seu gosto desafia o do meu amigo.

- Venha, vamos lá.

- Aonde?

- À sua cave.

- Não, meu amigo, não exigiria tanto da sua bondade. Vejo que tem compromissos. Luchesi...

- Não tenho compromisso nenhum, vamos.

- Não, meu amigo. Não será o compromisso, mas aquele frio terrível que bem sei que o aflige. A cave é insuportavelmente úmida. Está coberta de salitre.

- Mesmo assim, vamos lá. O frio não é nada. Amontillado! Você foi ludibriado. E quanto a Luchesi, não distingue xerez de amontillado.

Assim falando, Fortunato pegou-me pelo braço. Depois de pôr uma máscara de seda preta e de envergar um roquelaire cingido ao corpo, tive que suportar-lhe a pressa que levava a caminho do meu palacete.

Não havia criados em casa; tinham desaparecido todos para festejar aquela quadra. Eu tinha-lhes dito que não voltaria senão de manhã e dera-lhes ordens explícitas para se não afastarem de casa. Ordens essas que foram o suficiente, disso estava eu certo, para assegurar o rápido desaparecimento de todos eles, mal voltara costas.

Retirei das arandelas dois archotes e, dando um a Fortunato, conduzi-o através de diversos compartimentos até à entrada das caves. Desci uma grande escada de caracol e pedi-lhe que se acautelasse enquanto me seguia. Quando chegamos ao fim da descida encontrávamo-nos ambos sobre o chão úmido das catacumbas dos Montresors.

O andar do meu amigo era irregular e os guizos da capa tilintavam quando se movia.

- O barril? - perguntou.

- Está lá mais para diante - disse eu -, mas veja a teia branca de aranha que cintila nas paredes da cave.

Voltou-se para mim e pousou nos meus olhos duas órbitas enevoadas pelos fumos da intoxicação.

- Salitre? - perguntou por fim.

- Sim - respondi. - Há quanto tempo tem essa tosse?

- Cof!, cof!, cof! cof!, cof!, cof!

O meu amigo ficou sem poder responder-me durante bastante tempo.

- Não é nada - acabou por dizer.

- Venha - disse-lhe com decisão. - Retrocedamos, a sua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado; você é feliz como eu já o fui em tempos. Você é um homem cuja falta se sentiria. Quanto a mim, não importa. Retrocedamos. Ainda é capaz de adoecer e não quero assumir tal responsabilidade. Além disso, há Luchesi...

- Basta! - replicou. - A tosse não é nada, não me vai matar. Não vou morrer por causa da tosse.

- Pois decerto que não, pois decerto - respondi -; não é minha intenção alarmá-lo desnecessariamente, mas deve usar de cautela. Um gole deste médoc defender-nos-á da umidade.

Quebrei o gargalo de uma garrafa que retirei de uma longa fila de muitas outras iguais que jaziam no bolor.

- Beba - disse, apresentando-lhe o vinho.

Levou-o aos lábios, olhando-me de soslaio. Fez uma pausa e abanou a cabeça significativamente, enquanto os guizos tilintavam.

- Bebo - disse - aos mortos que repousam à nossa volta.

- E eu para que você viva muito.

Novamente me tomou pelo braço e prosseguimos.

- Estas catacumbas são enormes - disse ele.

- Os Montresors - respondi - constituíam uma família grande e numerosa.

- Não me lembro do vosso brasão.

- Um enorme pé humano, de ouro, em campo azul; o pé esmaga uma serpente rastejante cujas presas estão ferradas no calcanhar.

- E a divisa?

Nemo me impune lacessit

- Ótimo! - disse ele.

O vinho brilhava no seu olhar e os guizos tilintavam. A minha própria disposição melhorara com omédoc. Tinha passado por entre paredes de ossos empilhados, à mistura com barris e barris, nos mais recônditos escaninhos das catacumbas. Parei novamente e desta vez fiz questão de segurar Fortunato por um braço, acima do cotovelo.

- Salitre! - disse eu -, veja como aumenta. Parece musgo nas abóbadas. Estamos sob o leito do rio. As gotas de umidade escorrem por entre os ossos. Venha, vamo-nos embora que já é muito tarde. A sua tosse...

- Não faz mal - retorquiu -, continuaremos. Antes, porém, mais um trago de rnédoc.

Abri e passei-lhe uma garrafa de De Grâve. Despejou-a de um trago. Os olhos brilharam-lhe com um fulgor feroz. Riu e atirou a garrafa ao ar, com uns gestos que não entendi.

Olhei-o surpreso. Repetiu o movimento grotesco.

- Não compreende?

- Não, não compreendo - respondi.

- Então não pertence à irmandade.

- Como?

- Quero eu dizer que não pertence à Maçonaria.

- Sim, sim - disse -, sim, pertenço.

- Você? Impossível! Um maçon?

- Sim, um maçon - respondi.

- Um sinal - disse ele.

- Aqui o tem - retorqui, mostrando uma colher de pedreiro que retirei das dobras do meu roquelaire.

- Está a brincar - exclamou, recuando alguns passos. - Mas vamos lá ao amontillado.

- Assim seja - disse eu, tornando a colocar a ferramenta sob a capa e tornando a oferecer-lhe o meu braço. Apoiou-se nele pesadamente. Continuamos o nosso caminho em procura doamontillado. Passamos por uma série de arcos baixos, descemos, atravessamos outros, descemos novamente e chegamos a uma profunda cripta na qual a rarefação do ar fazia com que os archotes reluzissem em vez de arderem em chama.

No ponto mais afastado da cripta havia uma outra cripta menos espaçosa. As paredes tinham sido forradas com despojos humanos, empilhados até à abóbada, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três das paredes desta cripta interior estavam ainda ornamentadas desta maneira. Na quarta parede, os ossos tinham sido derrubados e jaziam promiscuamente no solo, formando num ponto um montículo de certo vulto. Nessa parede assim exposta pela remoção dos ossos, percebia-se um recesso ainda mais recôndito, com um metro e vinte centímetros de fundo, noventa centímetros de largo e um metro e oitenta a dois metros e dez de alto. Parecia não ter sido construído com qualquer fim específico, constituindo apenas o intervalo entre dois dos colossais suportes do teto das catacumbas, e era limitado, ao fundo, por uma das paredes circundantes em granito sólido.

Foi em vão que Fortunato, levantando o seu tíbio archote, tentou sondar a profundidade do recesso. A enfraquecida luz não nos permitia ver-lhe o fim.

- Continue - disse eu -, o amontillado está aí dentro. Quanto a Luchesi...

- É um ignorante - interrompeu o meu amigo, enquanto avançava, vacilante, seguido por mim. Num instante atingira o extremo do nicho, e vendo que não podia continuar por causa da rocha, ficou estupidamente desorientado. Um momento mais e tinha-o agrilhoado ao granito. Havia na parede dois grampos de ferro, distantes um do outro, na horizontal, cerca de sessenta centímetros. De um deles pendia uma pequena corrente e do outro um cadeado. Lançar-lhe a corrente em volta da cintura e fechá-la foi obra de poucos segundos. Ficara demasiado surpreendido para oferecer resistência. Retirei a chave e recuei.

- Passe a mão pela parede - disse eu. - Não deixará de sentir o salitre. Na realidade está muito úmido. Mais uma vez lhe suplico que nos retiremos. Não lhe convém? Nesse caso, tenho realmente de o deixar. Mas, primeiro, quero prestar-lhe todas as pequenas atenções ao meu alcance.

- O amontillado! - berrou o meu amigo, que se não recompusera ainda do espanto em que se encontrava.

- É verdade - respondi. - O amontillado.

Ao dizer isto, pus-me a procurar com todo o afã por entre as pilhas de ossos de que já falei. Atirando com eles para o lado, pus a descoberto uma quantidade de pedras e argamassa. Com estes materiais e com a ajuda da minha colher de pedreiro, comecei a entaipar com todo o vigor a entrada do nicho.

Mal tinha colocado a primeira fiada de pedras quando descobri que a embriaguez de Fortunato tinha em grande parte desaparecido. A este respeito, o primeiro indício foi-me dado por um longo gemido vindo da profundidade do recesso. Não era o gemido de um ébrio. Sucedeu-se um prolongado e obstinado silêncio. Pus a segunda fiada de pedras, a terceira e a quarta. Em seguida ouvi as vibrações furiosas da corrente. O ruído prolongou-se por alguns minutos, durante os quais, para me ser possível ouvi-lo com maior satisfação, suspendi a minha tarefa e sentei-me no montículo de ossos. Quando finalmente cessou o tilintar, retomei a colher de pedreiro e completei sem interrupção a quinta, a sexta e a sétima fiadas. A parede estava agora quase ao nível do meu peito. Parei novamente e, elevando o archote acima do parapeito, fiz incidir alguns raios de luz sobre a figura que lá estava dentro.

Uma sucessão de gritos altos e agudos, irrompendo de súbito da garganta da figura agrilhoada, quase me atirou violentamente para trás. Por um breve momento hesitei, tremi. Desembainhei o florete e com ele comecei a tatear o recesso, mas bastou pensar um momento para voltar a sentir-me seguro. Coloquei a mão sobre a sólida construção das catacumbas e fiquei satisfeito. Tornei a aproximar-me da parede. Respondi aos gritos daquele que clamava. Repeti-os como um eco, juntei-me a eles, ultrapassei-os em volume e força. Depois disto, o outro sossegou.

Era agora meia-noite e a minha tarefa aproximava-se do fim. Completara já a oitava, a nona e a décima fiadas. Tinha acabado uma porção da décima primeira e última; faltava apenas colocar e fixar uma pequena pedra. Lutava com o seu peso; coloquei-a parcialmente na posição que lhe cabia. Soltou-se então do nicho um riso abafado que me arrepiou os cabelos. Seguiu-se uma voz triste que tive dificuldade em reconhecer como sendo a do nobre Fortunato. Dizia aquela voz:

- Ah!, ah!, ah!, he!, he!, boa piada, de fato, excelente gracejo. Havemos de rir bastante acerca disto, lá no palácio, he!, he!, he!, acerca do nosso vinho, he!, he!, he!

- amontillado? - disse eu.

- he!, he!, he!, he!, he!, he!, sim, o amontillado. Mas não estará a fazer-se tarde? Não estarão à nossa espera no palácio lady Fortunato e os convidados? Vamo-nos embora.

- Sim - disse eu -, vamo-nos.

Pelo amor de Deus, Montresor!

- Sim - disse eu -, pelo amor de Deus!

Em vão esperei uma resposta a estas palavras. Comecei a ficar impaciente. Chamei em voz alta:

- Fortunato!

Não obtive resposta. Chamei novamente:

- Fortunato!

Continuei sem resposta. Meti um archote pela pequena abertura e deixei-o cair lá dentro. Em resposta ouvi apenas um tilintar de guizos. Senti o coração oprimido, dada a forte umidade das catacumbas. Apressei-me a pôr fim à minha tarefa. Forcei a última pedra no buraco, e fixei-a com a argamassa. De encontro a esta nova parede tornei a colocar a velha muralha de ossos. Durante meio século nenhum mortal os perturbou. In pace requiescat!


Fonte: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/o/o_barril_de_amontillado

Postado por: Vanessa Rosa

domingo, 26 de agosto de 2012

A cartomante

Lima Barreto

Não havia dúvida que naqueles atrasos e atrapalhações de sua vida, alguma influência misteriosa preponderava. Era ele tentar qualquer cousa, logo tudo mudava. Esteve quase para arranjar-se na Saúde Pública; mas, assim que obteve um bom "pistolão", toda a política mudou. Se jogava no bicho, era sempre o grupo seguinte ou o anterior que dava. Tudo parecia mostrar-lhe que ele não devia ir para adiante. Se não fossem as costuras da mulher, não sabia bem como poderia ter vivido até ali. Há cinco anos que não recebia vintém de seu trabalho. Uma nota de dois mil-réis, se alcançava ter na algibeira por vezes, era obtida com auxílio de não sabia quantas humilhações, apelando para a generosidade dos amigos.

Queria fugir, fugir para bem longe, onde a sua miséria atual não tivesse o realce da prosperidade passada; mas, como fugir? Onde havia de buscar dinheiro que o transportasse, a ele, a mulher e aos filhos? Viver assim era terrível! Preso à sua vergonha como a uma calceta, sem que nenhum código e juiz tivessem condenado, que martírio!

A certeza, porém, de que todas as suas infelicidades vinham de uma influência misteriosa, deu-lhe mais alento. Se era "coisa feita", havia de haver por força quem a desfizesse. Acordou mais alegre e se não falou à mulher alegremente era porque ela já havia saido. Pobre de sua mulher! Avelhantada precocemente, trabalhando que nem uma moura, doente, entretanto a sua fragilidade transformava-se em energia para manter o casal.

Ela saía, virava a cidade, trazia costuras, recebia dinheiro, e aquele angustioso lar ia se arrastando, graças aos esforços da esposa.

Bem! As cousas iam mudar! Ele iria a uma cartomante e havia de descobrir o que e quem atrasavam a sua vida.

Saiu, foi à venda e consultou o jornal. Havia muitos videntes, espíritas, teósofos anunciados; mas simpatizou com uma cartomante, cujo anúncio dizia assim: “Madame Dadá, sonâmbula, extralúcida, deita as cartas e desfaz toda espécie de feitiçaria, principalmente a africana. Rua etc.".

Não quis procurar outra; era aquela, pois já adquirira a con- vicção de que aquela sua vida vinha sendo trabalhada pela mandinga de algum preto mina, a soldo do seu cunhado Castrioto, que jamais vira com bons olhos o seu casamento com a irmã.

Arranjou, com o primeiro conhecido que encontrou, o dinheiro necessário, e correu depressa para a casa de Madame Dadá.

O mistério ia desfazer-se e o malefício ser cortado. A abastança voltaria à casa; compraria um terno para o Zezé, umas botinas para Alice, a filha mais moça; e aquela cruciante vida de cinco anos havia de lhe ficar na memória como passageiro pesadelo.

Pelo caminho tudo lhe sorria. Era o sol muito claro e doce, um sol de junho; eram as fisionomias risonhas dos transeuntes; e o mundo, que até ali lhe aparecia mau e turvo, repentinamente lhe surgia claro e doce.

Entrou, esperou um pouco, com o coração a lhe saltar do peito.

O consulente saiu e ele foi afinal à presença da pitonisa. Era sua mulher.

Fonte:  http://www.spectroeditora.com.br/fonjic/barreto/sonhos/21.php 

Postado por : Vanessa Rosa.

A cartomante


Machado de Assis

Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.

— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...

— Errou! Interrompeu Camilo, rindo.

— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...

Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...

— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.

— Onde é a casa?

— Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.

Camilo riu outra vez:

— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.

Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muito cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.

Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.

Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor.

Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vente e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.

Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.

Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.

— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...

Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.

— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel.

Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.

Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda peior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéa, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.

— Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...

Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.

Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:

— Anda! agora! empurra! vá! vá!

Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?

Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.

A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:

— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...

Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.

— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...

— A mim e a ela, explicou vivamente ele.

A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.

— As cartas dizem-me...

Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável mais cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.

— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.

Esta levantou-se, rindo.

— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...

E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.

— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?

— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.

Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.

— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...

A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.

Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.

— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.

E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.

A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.

Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.

— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?

Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.

Fonte:  http://www.releituras.com/machadodeassis_cartomante.asp 

Postado por : Vanessa Rosa.